Este é um questionamento muito comum, uma vez que as empresas possuem personalidade jurídica distinta de seus sócios, o que justifica a sua autonomia patrimonial, isto é: o que é dos sócios é dos sócios, o que é da empresa é da empresa. É possível, então, que o sócio responda, com seu patrimônio pessoal, pelas dívidas da empresa?
Autonomia patrimonial
Primeiramente, é necessário entender que uma pessoa jurídica regularmente constituída possui bens, direitos e obrigações próprios, que não se confundem com os de seus membros.
Entretanto, há indivíduos que se aproveitam dessa autonomia para prejudicar credores, desviando a personalidade jurídica e escondendo-se sob o manto de sua autonomia patrimonial, certos de que seu patrimônio pessoal jamais será alcançado em eventual execução.
Na Inglaterra, um importante precedente judicial permitiu o início das discussões acerca da possibilidade de responsabilização do sócio pelas dívidas da sociedade. Trata-se do caso Salomon vs. Salomon & Co., em que um dos sócios abusou da personalidade da empresa e conseguiu a proteção dada pela autonomia patrimonial da sociedade.
Desconsideração da personalidade jurídica
Foi nesse contexto que surgiu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que consiste na superação temporária da personalidade jurídica, para que os credores possam ter seus créditos satisfeitos.
No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor foi o primeiro diploma normativo a adotar esta teoria. Veja o que ele dispõe:
- Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Note que são várias as possibilidades dadas pela lei consumerista.
Após o CDC, a lei dos crimes ambientais também permitiu a desconsideração caso a personalidade jurídica impeça a reparação dos danos causados ao meio ambiente:
- Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.
Além disso, o Código Civil de 2002, ao contrário do anterior, passou a prever esta possibilidade nas hipóteses elencadas pelo artigo 50:
- Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Vale mencionar que este dispositivo foi alterado pela Lei da Liberdade Econômica, que passou a explicar no que consistem o desvio de personalidade e a confusão patrimonial:
1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
Teoria maior e Teoria menor
Vistas as principais disposições do nosso ordenamento jurídico, passa-se a estudar as teorias acerca da desconsideração.
Teoria maior
A teoria maior é aquela que prevê mais requisitos para que se proceda à desconsideração da personalidade jurídica.
Assim, além do prejuízo a credor, é necessária a comprovação da fraude ou abuso. É o caso do artigo 50 do Código Civil, que permite a desconsideração em caso de abuso de personalidade caracterizado por:
- Desvio de finalidade.
- Confusão patrimonial.
Nesse sentido, observe a seguinte decisão da terceira turma do Superior Tribunal de Justiça:
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 50 DO CC/02. TEORIA MAIOR DA DESCONSIDERAÇÃO. INAPLICABILIDADE NO CASO. ABUSO DE PERSONALIDADE JURÍDICA. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. 1. Conforme entendimento reiterado pelas Turmas que compõem a Segunda Seção deste STJ, acerca dos pressupostos para da desconsideração de pessoa jurídica, a partir da interpretação do art. 50 do CC/02, deve ser adotada a Teoria Maior da Desconsideração. Assim, exige-se a demonstração de desvio de finalidade, demonstração de confusão patrimonial, ou a configuração do abuso de personalidade jurídica. 2. A mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações ou mesmo a alteração de endereço, NÃO constitui motivo suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica. 3. No caso dos autos, o acórdão recorrido afirmou que “diante das nuances que permeiam a presente lide, a constante mudança de endereço da empresa executada” levam ao entendimento da tentativa de esquivar do cumprimento das obrigações contraídas, o que justifica a desconsideração da personalidade jurídica. Diante desse contexto fático peculiar, não se verifica qualquer indício de boa-fé ou regularidade da empresa, hábil a dar sufrágio às alegações da recorrente, até mesmo porque o credor se vê na impossibilidade de ver satisfeito o seu crédito. 4. Alterar o decidido no acórdão impugnado, no que se refere à constatação da do abuso da personalidade jurídica, exige o reexame de fatos e provas, o que é vedado em recurso especial pela Súmula 7/STJ. 5. Recurso especial não provido. (STJ – REsp: 1635630 MG 2016/0252944-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 01/12/2016, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/12/2016).
Teoria menor
Já a teoria menor é aquela segundo a qual basta o prejuízo ao credor para que seja possível afastar a autonomia patrimonial da empresa. É o teoria adotada pelo artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor.
É assim que os Tribunais Superiores têm decidido acerca desta teoria:
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. TEORIA MENOR. ART. 28, § 5°, DO CDC. MEMBRO DE CONSELHO FISCAL. ATOS DE GESTÃO. PRÁTICA. COMPROVAÇÃO. AUSÊNCIA. INAPLICABILIDADE. 1. Para fins de aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica (art. 28, § 5°, do CDC), basta que o consumidor demonstre o estado de insolvência do fornecedor ou o fato de a personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados. 2. A despeito de não se exigir prova de abuso ou fraude para fins de aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica, tampouco de confusão patrimonial, o § 5° do art. 28 do CDC não dá margem para admitir a responsabilização pessoal de quem jamais atuou como gestor da empresa. 3. A desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade cooperativa, ainda que com fundamento no art. 28, § 5°, do CDC (Teoria Menor), não pode atingir o patrimônio pessoal de membros do Conselho Fiscal sem que que haja a mínima presença de indícios de que estes contribuíram, ao menos culposamente, e com desvio de função, para a prática de atos de administração. 4. Recurso especial provido. (STJ – REsp: 1766093 SP 2018/0234790-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 12/11/2019, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/11/2019).
Conclusão
Conforme elucidamos ao longo deste artigo, é possível SIM que o sócio responda, com seu patrimônio particular, pelas dívidas da empresa. Os requisitos autorizadores vão variar de acordo com a teoria a adotada: se for a maior, será necessária a comprovação do abuso; se for a menor, bastará o prejuízo ao credor.
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